Para mim, Distrito 9 foi isso: um tapa na cara, espalmado, afrontoso, desconcertante.
E Distrito 9, para mim, chegou exatamente lá. E a coisa toda é ainda maior do que as questões de racismo, discriminação, xenofobia... Essa primeira informação que podemos alcançar - e que existe, é verdade, mas não é a única - se deve, de modo especial, ao fato de o filme retratar os alienígenas "camarões" (identificados assim mesmo, bem pejorativamente), vivendo em uma verdadeira favela horizontal em um local marginal (o tal distrito do título), providencialmente localizado na cidade de... Joanesburgo, África do Sul. E lembrar das lutas contra o apartheid é natural. O filme foi rodado lá (na verdade, no próprio Soweto, local onde a segregação racial ganhou contornos simbólicos para a humanidade). O seu diretor (o novato e pertencente ao ramo publicitário, Neil Blomkamp, que fez um grande trabalho) é de lá. O intérprete do chatíssimo e depois avassalador Wikus van der Merwe (e depois imbecil e depois avassalador, e depois idiota e depois avassalador... nada mais humano que esse paradoxo interno/eterno), personagem principal, o estreante Sharlto Copley, é de lá (com um sotaque que fez Hollywood ficar vermelha de raiva, e uma vozinha típica daqueles chatos burocratas que encontramos em qualquer repartição pública). As manifestações populares sobre os aliens que aparecem durante o fime (que, por incrível que pareça, foram na verdade colhidas questionando a população local sobre os imigrantes ilegais - o que dá a noção de que, sejam ET´s, sejam nossos iguais, a humanidade gosta mesmo é de descartar, rejeitar, afastar o diferente, estereotipar...) vieram daquele local - e, portanto, carregam muito do ranço discriminatório, raivoso, doído e porque não dizer, de contornos históricos.
Mas ainda assim as coisas conseguem ir mais além (como se já não fosse bom o suficiente). Ver o ser humano lutando contra os "camarões" (cujas figuras foram construídas utilizando mais o velho esquema das fantasias originais do que da computação gráfica, o que os deixa ainda mais "comuns", "rotineiros", integrados ao ambiente no qual aparecem), ver o ser humano criticando, rejeitando, açoitando, matando sem dó nem piedade (e haja estômago, porque a violência e a morte são de um tom cru de revirar o estômago), aproveitando que esses não são ET´s-megalomaníacos-universais-dominando-a-humanidade, nos faz olhar a nós mesmos no que temos de mais aberrante. O que fazer com o que não conseguimos explicar ou controlar ?
Pior: talvez só sentindo alguma espécie de compaixão pelos enormes seres de além-espaço é que conseguimos perceber o que temos feito conosco mesmo.
Afinal, a mim pareceu doer muito mais ver aqueles seres em estado de miséria, comendo lixo, vivendo na imundice e sofrendo os diabos do que ver seres humanos, brancos, negros, vermelhos, amarelos, esquálidos, velhos, jovens, crianças, nas mesmas condições, como temos a oportunidade de ver no nosso mais tradicional dia-a-dia. O desumano, nos "camarões", dói mais que o desumano nos homens! Onde vamos (já fomos?) parar?
Ou seja: os aliens só precisam ser aliens porque, distanciando do próprio ser humano toda aquela raiva, sofrimento e dor que nos acostumamos a ver todo dia, nas ruas, nos jornais, nos bolsões de miséria muito perto de nossas casas, nas estradas, nas encruzilhadas, podemos começar a sentir de novo o tamanho das nossas crueldades, da nossa manipulação, do jogo de nossos interesses; quando as mazelas são lançadas, no filme, contra seres que a princípio reputamos nojentos, horrorosos, disformes, em algum momento acabamos encontrando neles a mesma fragilidade que um dia - um dia - já pudemos ver em nós mesmos, no outro, no nosso semelhante. O filme, não sei se conscientemente ou se isso que eu descrevo é uma sensação minha, naquela célebre idéia de que um texto depois de escrito pertence mesmo é a quem o lê, usa dos insetos de um modo curioso, para que possamos nos re-enxergar, passando primeiro pela figura tão estranha dos extraterrestres.
Alguns diálogos são excessivos; a "narrativa" que as emissoras de TV fazem em alguns momentos do filme é exagerada. Mas "perfeição", perfeição, já seria demais. Chato mesmo é ver meia dúzia de ditos críticos intelectuais ficarem acusando o filme de clichê, ou de ser uma mistura de elementos básicos e ultrapassados - mas nenhum desses sabichões colocou um roteirinho sequer para que pudesse ser criticado pelos meros mortais (ou, quem sabe, pelos "camarões"!). Enfim... é o sagrado direito de expressão.
De cá, fica a sugestão forte, enorme, repetida 100 vezes se for preciso: vá assistir. É diversão certa - o que, para quem realmente gosta de cinema e quer exercitar mais do que dois neurônios, não significa risinhos (não há), pipoca (você não vai conseguir comer) e relaxamento (assisti quase de pé, ou passando a mão pelos cabelos). Pensar e criticar (a si mesmo, inclusive) pode ser divertido, nos faz melhores. Quase duas horas de pressão. Tem que aguentar. Como aguentaram os camarões. E o van der Merwe.
E pensar que a todo o tempo eles queriam o mesmo que nós.
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